A Ladeira da Misericórdia
Atualmente a Ladeira da Misericordia está desconectada do tecido urbano da cidade. Poucas pessoas sabem sua história, localização ou até mesmo sua existência. Alguns ainda se aventuram a subir para utilizá-la como banheiro público. O intenso trânsito na Travessa da Misericórdia, a inexistência de calçadas na Av. Marechal Caiado de Castro, desqualifica o local como espaço de permanência e visitação. Os estacionamentos irregulares ocupam os espaços livres e, recentemente, uma autarquia estadual gradeou todo o entorno da Ladeira da Misericórdia para parqueamento de seus carros.
Nossa premissa projetual foi considerar a Ladeira uma ruína histórica e recuperá-la como tal, valorizando-a como o elemento mais antigo da cidade, registro de um determinado período da história de nossa evolução urbana. Entretanto, é também necessário estabelecer uma relação entre o objeto e o público, fazer com que as pessoas subam a Ladeira, sintam seu piso em pé-de-moleque, a fachada da Santa Casa da Misericórdia, a vista para a Baía de Guanabara, enfim, retornem um pouco no tempo e se identifiquem com a memória deste lugar. Desta forma, agregar algum tipo de informação, com formato distinto dos totens informativos que se espalham pela cidade e poucas pessoas lêem, é fundamental para dispertar a curiosidade e o interesse nas pessoas sobre a história deste local. Assim, desenhamos grandes letras em aço, chumbadas no piso da Travessa da Misericórdia, que compõem uma bela frase de autoria do escritor Machado de Assis, do livro Esaú e Jacó:
“Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca foi lá, muita haverá morrido. muito mais nascerá e morrerá sem lá por os pés”.
Esta frase foi escrita em 1902, e aparece logo no início do livro, quando um dos personagens, pertencente à classe social mais abastada, sobe o Morro para consultar uma vidente. E a subida é cercada de estratagemas para que ninguém desconfie de sua presença no “mal falado” local. Neste livro, Machado de Assis apresenta uma visão íntima e próxima do Morro, descrevendo as pessoas, as atividades e a atmosfera alegre. A frase surge como um prenúncio da destruição deste ambiente. Pelo tamanho das letras e disposição, esta frase só poderá ser lida em sua totalidade do alto da Ladeira. Assim, para compreender o escrito machadiano, será preciso subir. E sentir.
“O problema da recuperação e restauração de monumentos, trate-se de uma casa seiscentista como estas de São Paulo, ou das ruínas de São Miguel, no Rio Grande do Sul, é extremamente complexo. Primeiro, porque depende de técnicos qualificados cuja formação é demorada e difícil, pois requer, além de tirocínio de obras e de familiaridade com os processos construtivos antigos, sensibilidade artística, conhecimento históricos, acuidade investigadora, capacidade de organização, iniciativa e comando e, ainda, finalmente, desprendimento.”
Lúcio Costa, 1970.
A recuperação deste ambiente urbano passa obrigatoriamente pela reordenação viária do entorno imediato da Ladeira. A Travessa da Misericórdia será transformada em rua peatonal, de serviço, com acesso regulado para usos da Igreja de Bonsucesso e do Museu Histórico Nacional. O asfalto será substituído por paralelepípedo e as calçadas, em granito de costaneira, serão recuperadas. Através da prospecção arqueológica, determinaremos o traçado original da Travessa, procurando adequá-lo a situação existente, caso se faça necessário. As grades que cercam a Ladeira e se prolongam pela Rua Marechal Agnaldo Caiado de Castro serão removidas. Esta mudança na característica viária, aprovada pela CET_Rio, tem por objetivo garantir a integridade das construções históricas e proporcionar um ambiente mais agradável para o passeio e a visitação turística.
O Prédio Anexo
A construção de um pequeno prédio anexo junto a Ladeira abrigará uma exposição permanente sobre a história do Morro do Castelo. Em seu interior, uma grande maquete onde as pessoas poderão circular ao redor e perceber a exata localização do Morro hoje. Terminais de computadores com informações digitalizadas e tridimensionais estarão disponíveis para o público em geral. Pretendemos ainda, negociar junto aos frades Capuchinos, a tranferência do túmulo de Estácio de Sá e o Marco de fundação da cidade, que hoje se encontram em sua Igreja na Rua Haddock Lobo, Tijuca, para o Memorial Estácio de Sá (projetado por Lúcio Costa na década de 60 e localizado no Aterro do Flamengo) e para o Prédio Anexo à Ladeira da Misericórdia respectivamente. Na Ilha do Fundão (UFRJ) existem colunas, capitéis e outros ornatos em mármore, que faziam parte da Igreja não terminada pelos Jesuítas, que tentaremos também trazê-los para o pátio da nova edificação, preservando e contextualizando-os. Para isto, a ajuda e a parceria com o IPHAN e Prefeitura será fundamental.
A arquitetura do Prédio Anexo é resultado direto das condicionantes históricas e geográficas do local. Desenhar uma nova arquitetura contígua ao “coração da cidade” não deve, em hipótese alguma, disputar atenção com o patrimônio em questão. Pelo contrário, sua forma e implantação surgem apenas como um “apêndice funcional”. Camillo Boito (1836 -1914), arquiteto e teórico do restauro, determina que a intervenção deve distinguir-se esteticamente do original pela simplificação da ornamentação e, estruturalmente, pelo uso de materiais diferentes, marcando claramente o limite entre a matéria nova e a antiga. O prédio anexo foi concebido em estrutura metálica e suas fachadas laterais revestidas em chapas de aço cor-ten. Sua cobertura é uma rampa que interliga a Ladeira da Misericórdia à Rua Marechal Agnaldo Caiado de Castro. Seu formato zigue-zague acompanha a murada da Santa Casa e preserva as belas árvores existentes, conformando um pátio sombreado para uso dos visitantes. A oxidação da chapa fará uma alusão à terra, ao barrro, estabelecendo um vínculo material à Ladeira e a memória do Morro do Castelo.
A Ladeira da Misericórdia e o Prédio Anexo se transformam em um percurso de transição temporal, que se inicia em 1568 e finaliza no tempo presente. Ou vice e versa.
Cliente: Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.
Local: Centro, Rio de Janeiro, RJ.
Data: 2003
Área: 1.600m2 [Ladeira + Anexo]
Equipe: Carolina Poppe
Maquete: Carolina Poppe
Bem tombado pelo IPHAN.