O projeto de RESTAURAÇÃO DA LADEIRA DA MISERICÓRDIA E CONSTRUÇÃO DO ANEXO CULTURAL tem por objetivo garantir qualidade urbana ao cidadão através da recuperação e valorização da memória da cidade e do patrimônio edificado, da implementação de um novo programa de usos e da melhoria do trânsito de veículos e pedestres na região. Estruturamos o projeto de forma que contribua com o desenvolvimento urbano da cidade. Com esta preocupação e cuidado, elaboramos nossa proposta para a restauração da Ladeira da Misericórdia, o “coração” da cidade do Rio de Janeiro.
Atualmente a Ladeira está desconectada do tecido urbano da cidade. Poucas pessoas sabem sua história, localização ou até mesmo sua existência. Alguns ainda se aventuram a subir para utilizá-la como banheiro público. O intenso trânsito na Travessa da Misericórdia, a inexistência de calçadas na Av. Marechal Caiado de Castro, desqualifica o local como espaço de permanência e visitação. Os estacionamentos irregulares ocupam os espaços livres e, recentemente, uma autarquia estadual gradeou todo o entorno da Ladeira da Misericórdia para parqueamento de seus carros. A questão levantada para nossa equipe era como intervir nesta região, tornando-a um local atrativo e agradável para os cariocas e turistas em geral, reconectando-a à cidade e propiciando informação sobre a história da Ladeira da Misericórdia e do Morro do Castelo.
Nossa premissa projetual foi considerar a Ladeira uma ruína histórica e recuperá-la como tal, valorizando-a como o elemento mais antigo da cidade, registro de um determinado período da história de nossa evolução urbana. Entretanto, é também necessário estabelecer uma relação entre o objeto e o público, fazer com que as pessoas subam na Ladeira, sintam seu piso em pé-de-moleque, a fachada da Santa Casa da Misericórdia, a vista para a Baía de Guanabara, enfim, retornem um pouco no tempo e se identifiquem com a memória deste lugar. Desta forma, agregar algum tipo de informação, com formato distinto dos totens informativos que se espalham pela cidade e poucas pessoas lêem, é fundamental para dispertar a curiosidade e o interesse nas pessoas sobre a história deste local. Assim, desenhamos grandes letras em aço ASTM 36, chumbadas no piso da Travessa da Misericórdia, que compõem uma bela frase de autoria do escritor Machado de Assis, do livro Esaú e Jacó:
“Muita gente há no Rio de Janeiro que nunca foi lá, muita haverá morrido. muito mais nascerá e morrerá sem lá por os pés”.
Esta frase é muito interessante. Ela foi escrita em 1902, e aparece logo no início do livro, quando um dos personagens, pertencente à classe social mais abastada, sobe o Morro para consultar uma vidente. E a subida é cercada de estratagemas para que ninguém desconfie de sua presença no “mal falado” local. Neste livro, Machado de Assis apresenta uma visão íntima e próxima do Morro, descrevendo as pessoas, as atividades e a atmosfera alegre. A frase surge como um prenúncio da destruição deste ambiente. Pelo tamanho das letras e disposição, esta frase só poderá ser lida em sua totalidade do alto da Ladeira. Assim, para compreender o escrito machadiano, será preciso subir. E sentir.
Todo o entorno da Ladeira da Misericórdia sofrerá prospecções para verificar a existência de resquícios arqueológicos, assim como já feito na Praça XV (Chafariz do Mestre Valentim e a antiga murada do Cais Pharoux). Caso sejam encontrados elementos de relevância histórica, nossa proposta de inserção da frase machadiana e a construção do Anexo Cultural serão imediatamente abortados e substituídos pela organização e consolidação dos achados. Após a etapa prospectiva, realizaremos os seguintes trabalhos na Ladeira da Misericórdia: - Cadastro e mapeamento dos danos e análise da quantidade de vazios para determinação do grau de consolidação do substrato; - Análise granulométrica e de traço; - Remoção da vegetação existente; - Consolidação, embrechamento e preenchimento dos vazios; - Tratamento protetivo e velatura; - Relatório técnico referente a cada etapa da restauração e acompanhamento dos procedimentos à serem implementados. Acrescentamos ainda, em nosso texto sobre o processo de restauração da Ladeira, as lúcidas palavras de Lúcio Costa:
“O problema da recuperação e restauração de monumentos, trate-se de uma casa seiscentista como estas de São Paulo, ou das ruínas de São Miguel, no Rio Grande do Sul, é extremamente complexo. Primeiro, porque depende de técnicos qualificados cuja formação é demorada e difícil, pois requer, além de tirocínio de obras e de familiaridade com os processos construtivos antigos, sensibilidade artística, conhecimento históricos, acuidade investigadora, capacidade de organização, iniciativa e comando e, ainda, finalmente, desprendimento.”
Lúcio Costa, 1970.
A recuperação deste ambiente urbano passa obrigatoriamente pela reordenação viária do entorno imediato da Ladeira. A Travessa da Misericórdia será transformada em rua de serviço, com acesso regulado para usos da Igreja de Bonsucesso e do Museu Histórico Nacional. O asfalto será substituído por paralelepípedo e as calçadas, em granito de costaneira, serão recuperadas. Através da prospecção arqueológica, determinaremos o traçado original da Travessa, procurando adequá-lo a situação existente, caso se faça necessário. As grades que cercam a Ladeira e se prolongam pela Rua Marechal Agnaldo Caiado de Castro serão inteiramente removidas. Esta mudança na característica viária, aprovada pela CET_Rio, tem por objetivo garantir a integridade das construções históricas e proporcionar um ambiente mais agradável para o passeio e a visitação turística. Seguindo o mesmo conceito e aprovado de igual forma, a Rua Marechal Agnaldo Caiado de Castro, responsável pela ligação entre a Avenida Antônio Carlos e Rua Almirante Barroso ao Terminal de ônibus da Praça XV, terá sua caixa de rolamento reduzida em 2,0m, passando a ter 7,10m, de acordo com a dimensão mínima exigida para a demanda do tráfego local. Este espaço conquistado é necessário e fundamental para a construção do Anexo Cultural e para novas calçadas, garantindo acessibilidade, conforto e segurança aos pedestres que por ali circulam em direção ao Terminal Rodoviário e a Ladeira da Misericórdia.
A construção da pequena edificação - Anexo Cultural - tem por objetivo abrigar uma exposição permanente sobre a história do Morro do Castelo. Em seu interior estará exposto uma grande maquete onde as pessoas poderão circular ao redor e perceber a exata localização do Morro hoje. Terminais de computadores com informações digitalizadas e tridimensionais estarão disponíveis para o público em geral. Pretendemos ainda, negociar junto aos frades capuchinos, a tranferência do túmulo de Estácio de Sá e o Marco da fundação da cidade, que hoje se encontram em sua Igreja na Rua Haddock Lobo, Tijuca, para o Memorial Estácio de Sá (projetado por Lúcio Costa na década de 60 e localizado no Aterro do Flamengo) e para o Anexo Cultural respectivamente. Na Universidade Federal Rio de Janeiro - Ilha do Fundão, existem colunas, capitéis e outros ornatos em mármore, que faziam parte da Igreja não terminada pelos Jesuítas, espalhados pelo campus expostos e desprotegidos de vândalos e intempéries. Tentaremos também trazê-los para o pátio da nova edificação, preservando e contextualizando-os. Para isto, a ajuda e a parceria com o IPHAN será fundamental.
A arquitetura do Anexo Cultural é resultado direto das condicionantes históricas e geográficas do local. Desenhar uma nova arquitetura contígua ao “coração da cidade” não deveria, em hipótese alguma, disputar atenção com o patrimônio em questão. Pelo contrário, sua forma e implantação surgiriam apenas como um “apêndice funcional”. Camillo Boito (1836 -1914), arquiteto e teórico do restauro, determinava que a intervenção, deveria distinguir-se esteticamente do original pela simplificação da ornamentação e, estruturalmente, pelo uso de materiais diferentes, marcando claramente o limite entre a matéria nova e a antiga. O prédio é todo em estrutura de concreto armado e alvenaria e suas fachadas laterais são revestidas externamente em chapas de aço cor-ten. Sua cobertura é uma rampa de acesso que interliga a Ladeira da Misericórdia à Rua Marechal Agnaldo Caiado de Castro. Seu formato zigue-zague acompanha a murada da Santa Casa e preserva as belas árvores existentes, conformando um pátio sombreado para uso dos visitantes.
A oxidação da chapa conferirá uma coloração que fará uma alusão à terra, ao barrro, estabelecendo um vínculo material à Ladeira e a memória do Morro do Castelo. Uma pequena e estreita passarela em estrutura metálica, toda revestida em chapa perfurada (laterais e teto) conecta o Anexo à Ladeira, sem entretanto tocá-la. Sua estrutura de apoio e fixação se faz por dois pilares metálicos e no corpo do próprio Anexo. A “passarela-túnel” impede uma visão nítida do exterior, permitindo somente a passagem de luz. Assim, o pedestre a percorre como um espaço de transição entre os dois tempos: o da Ladeira (1568) e o atual.
Cliente: Cidade do Rio de Janeiro.
Local: Centro, Rio de Janeiro, RJ.
Equipe: Carolina Poppe
Maquete: Carolina Poppe
Área: 1.600m2 [Ladeira + Anexo]
Data: 2003
Bem tombado pelo IPHAN.