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Mercado São José

Um manifesto contra as empenas cegas na cidade do Rio de Janeiro

O Mercado São José e sua função estratégica para a cidade do Rio de Janeiro

 

A cidade do Rio de Janeiro possui poucas edificações de caráter público que tenham qualidade urbanística para se tornar uma centralidade de bairro, ou seja, uma referência arquitetônica local que seja um espaço de encontro e trocas entre os moradores da região. Os espaços ou edificações que cumprem essa função na cidade são atualmente “acasos” urbanísticos, visto que sua existência não é consequência de uma estratégia de desenvolvimento urbano, mas sim de um conjunto de fatores não concatenados – como qualidade arquitetônica, localização, usos – que acabam por criar uma condição de centralidade urbana e, consequentemente, relações socioculturais extremamente potentes entre o espaço e seus usuários.

 

Assim podíamos descrever o Mercadinho São José, no bairro das Laranjeiras, até seu fechamento no ano de 2018. Outrora antiga senzala e celeiro de uma fazenda localizada no Parque Guinle, na época do império, o local teve suas baias adaptadas para boxes em 1942, quando Getúlio Vargas decidiu transformá-lo em um mercado de hortifrutigranjeiros para abastecer a população com produtos mais baratos durante a Segunda Guerra Mundial. Abandonado desde a década de 60, o Mercado foi revitalizado em 1988 e teve seu tombamento decretado em 1994, com grande apoio dos moradores [1]. Desde então, o espaço se consolidou como principal referência local, abrigando usos diversos (mercado e gastronomia) e pequenos eventos culturais.

 

Um grande número de frequentadores e os diversos usos comerciais no seu interior – dezesseis boxes, onde funcionavam seis bares-restaurantes; duas lojas (uma de artesanato e outra de artigos de capoeira); um estúdio musical e um ateliê – não contribuíram para a manutenção da edificação que, no ano de seu fechamento, apresentava infraestrutura precária, com danos ao bem tombado (intervenções inadequadas e falta de manutenção) e risco eminente de incêndio (rede elétrica precarizada). Passaram-se quatro anos e o Mercado São José segue fechado e, desde janeiro de 2022, interditado pela Defesa Civil devido ao estado deplorável de suas estruturas. São quatro anos que a cidade do Rio de Janeiro e, especificamente, o bairro das Laranjeiras, não contam com a contribuição urbanística de um potente equipamento de bairro, um espaço com qualidades adquiridas ao longo de sua história, independente de planejamento governamental e que, ironicamente, foi fechado por determinação de governo: o INSS, proprietário do imóvel, solicitou a saída dos ocupantes e o fechamento do prédio.

 

A cidade Londres, capital da Inglaterra, possui como diretriz de seu planejamento urbano, a criação de equipamentos de caráter público com características de centralidade urbana para cada um de seus distritos (Boroughs). Um exemplo emblemático é a biblioteca de Peckham, desenhada pelo falecido arquiteto Will Alsop e construída no bairro de mesmo nome, localizado no sudeste de Londres, uma região menos favorecida da cidade. A biblioteca, planejada para ser um catalisador urbano da região, é articulada com uma praça e próxima à estação de metrô - condição muito similar ao Mercado São José, atraindo a comunidade local para suas premissas e, consequentemente, ativando o comércio lindeiro e gerando segurança para o espaço público. Mais pessoas na rua, mais empregos, mais segurança e, principalmente, mais geração de receitas para o Borough de Southwark (onde o bairro de Peckham se localiza).

 

Nossa proposta para o Mercado São José, aqui apresentada, esta imbuída deste entendimento estratégico para o bairro de Laranjeiras e a cidade do Rio de Janeiro: não é mais possível a cidade prescindir deste importante equipamento. Entretanto, sua reinserção no tecido urbano deve trazer não só as qualidades inerentes à sua história – um mercado em um prédio tombado – como resolver problemas urbanísticos e arquitetônicos oriundos de um período onde o desenvolvimento urbano era desprovido do olhar e da atenção a edificações com qualidades históricas, como o Mercado São José. A consequência direta deste período para a paisagem urbana da cidade do Rio de Janeiro, em especial nos bairros históricos, como Glória, Catete, Flamengo, Laranjeiras e Botafogo, são as diversas empenas cegas de edifícios construídos na década de 70 e 80, voltadas para edificações do século XIX até meados do século XX; e o brutal alargamento das vias carroçáveis para aumento da capacidade viária, o que prejudicou – e muito – a circulação de pedestres nos trecho onde se encontram edificações históricas – não demolidas ao longo deste processo – criando, em certos locais, situações de risco à vida. Para alcançar essas premissas, a proposta para o Mercado São José incorpora uma nova volumetria arquitetônica que ocupa, no total, três lotes de maneira interdependente: lote do Mercado (Rua das Laranjeiras n˚90), lote contíguo (Rua das Laranjeiras n˚86) e o lote da edificação lindeira (Rua das Laranjeiras 84, propriedade privada, tombamento municipal).

 

Com implantação recuada em relação aos bens tombados e altura equivalente aos prédios residenciais posteriores (Rua Gago Coutinho), nossa proposta respeita e valoriza a arquitetura do mercado e da edificação lindeira, com a criação de uma nova fachada, voltada para Rua das Laranjeiras, onde hoje encontram-se as empenas cegas dos prédios residenciais mencionados acima. Com a recuperação do seu uso e a restauração dos elementos originais e recomposição da arquitetura do Mercado São José – como abertura dos vãos, restauração do chafariz, do pátio central e do telhame interno e inserção de uma claraboia de vidro - mantemos íntegro o entendimento histórico da edificação tombada e potencializamos a percepção urbanística dos bens tombados para quem percorre a Rua das Laranjeiras. Desta forma, o novo projeto se organiza em dois grandes elementos ancorados nas particularidades de cada um dos lotes que ocupa: 1. No lote do Mercado (90), a nova edificação se localiza na sua parte posterior, com gabarito equivalente à edificação residencial limítrofe (posterior, situada na Rua Gago Coutinho); e 2. No lote contíguo (86), ocupa a totalidade do lote, respeitando o limite de altura da APAC local de 11 metros.


Usos estratégicos

O projeto proposto contempla 22 unidades residenciais com apartamentos de um e dois quartos (área privativa total de 1.400m2), que serão alienados, terraço-jardim acessível aos moradores e, no pavimento térreo, usos comerciais ligados a gastronomia, como espaços para venda de produtos orgânicos, doceria, bebidas artesanais, padaria/pizzaria (fermentação natural) e um pequeno bar/restaurante. Os usos comerciais do térreo terão horário de funcionamento das 9h às 00h. Por se situar a cerca de 350m do Largo do Machado, onde se encontra a estação de metrô com mesmo nome, a edificação proposta não oferece vagas de garagem. Trata-se de uma região com grande oferta de transportes, equipamentos públicos e serviços. O acesso à torre residencial se dá no lote 86, através de uma passagem coberta, ou pilotis, que faz a vez de uma grande marquise, como uma galeria comercial (tipologia bastante usual na região) que também será apropriada com usos gastronômicos. Serão cerca de 245m2 de área comercial no empreendimento (pavimento térreo), sendo 125m2 de lojas dentro do Mercado São José (soma-se ainda os 166,90m2 do pátio coberto climatizado do Mercado que poderá ser apropriado com mesas e pequenos eventos) e cerca de 100m2 na praça de coberta (até duas lojas de 50m2 cada).

 

As novas fachadas ativas

Vizinho a nossa proposta, e com orientação similar, está o edifício Nova Cintra, do Lúcio Costa (no Parque Guinle). Por conta da pouca incidência solar, sua fachada sul (Rua Gago Coutinho) é definida por um grande pano de vidro, rigidamente marcado pela modulação das esquadrias e emoldurado por um requadro pétreo, conferindo coesão compositiva, estrutural e, acima de tudo, leitura e entendimento de uma superfície única. As janelas, em madeira (em cor branca) e vidro, possuem três divisões, sendo a superior e inferior fixas, e a intermediária, móvel (sistema guilhotina). Para garantir privacidade, a divisão inferior é pintada na cor azul céu que, quando percebida no conjunto da fachada, confere uma leveza característica de bandeiras juninas ou mesmo toldos coloniais e, quando percebida na individualidade da esquadria, confere a solidez necessária à materialidade do elemento arquitetônico. Para as fachadas da nova edificação junto ao Mercado São José repetimos o conceito compositivo da fachada sul do edifício Nova Cintra, entretanto, acentuamos a modulação rígida e repetitiva das esquadrias através de um requadro estrutural individualizado, garantindo similar coesão compositiva e leitura dos panos de fachada como uma superfície única e contínua. O resultado desta composição garante o protagonismo absoluto do bem tombado na paisagem e a qualificação do ambiente urbano com a eliminação das empenas cegas.

 

Entorno imediato

A proposta vai incrementar, e muito, o fluxo de pedestres no local. A reativação do mercado somada aos novos moradores, demandará mais conforto e segurança para a circulação pública ao rés do chão junto à Rua das Laranjeiras. Este trecho de calçada ficou muito reduzido por conta da política sistemática de alargamento das caixas de rolamento da cidade, em particular, da Rua das Laranjeiras. Caminhar neste trecho torna-se perigoso, pois a dimensão total da calçada (1,20m) é inferior a norma (1,50m) e, se considerarmos somente sua dimensão útil (50cm destinado à faixa de serviços urbanos), teremos 70cm livre para circulação. Para tornar esse trecho mais seguro para o pedestre, propomos algumas medidas fundamentais, a serem absorvidas pelo novo empreendimento:

 

1. Negociação com o proprietário do lote 84 para demolição parcial do muro voltado para Rua das Laranjeiras, alargando a faixa da calçada e melhorando a percepção da edificação para quem circula na Rua das Laranjeiras;

2. Criação de um novo acesso ao mercado pela lateral voltado para a edificação lindeira, garantindo passagem, pelo interior do mercado, à Rua Gago Coutinho;

3. Alteamento da pista (traffic calm) na Rua Gago Coutinho, em frente ao acesso ao Mercado, para o atravessamento de pedestres; e

4. Transferência da banca de jornal da calçada do mercado (em frente ao lote 76) para o lado oposto da Rua das Laranjeiras.


Conjunto arquitetônico Mercado São José

Conforme mencionado anteriormente, nossa proposta abarca as edificações nos lotes n˚ 90, 86 e 84. Entretanto, pensamos ser fundamental regular, a luz dos conceitos levantados por nosso projeto, a futura volumetria do lote n˚82. Entendemos que esses quatro lotes tem o potencial de definir um conjunto arquitetônico, ancorado na edificação do Mercado São José, gerando qualidades urbanas importantes para a região, como melhoria e ampliação do espaço público, ativação do tecido urbano e da economia local e, conforme já mencionado em nosso memorial, construção de uma centralidade urbana potente. Atualmente, constatamos exatamente o inverso: quando esses lotes são pensados e concebidos individualmente, sua capacidade de contribuir com a melhoria urbana é demasiada limitada, se restringindo aos seus limites. Desta forma, pensamos ser fundamental estender os conceitos presentes em nossa proposta para o lote n˚82 e assim propor, para análise do IRPH, um conjunto de parâmetros urbanos que, no futuro, qualquer empreendimento que venha acontecer aí consolide a criação do conjunto arquitetônico Mercado São José. São eles:

 

1. A futura edificação deverá contribuir com a eliminação das empenas cegas na região. Isto posto, sua volumetria deverá ser alinhada e contígua à edificação n˚76 da Rua das Laranjeiras (sem afastamento lateral). A nova edificação deverá ser uma fachada ativa para a cidade, voltada para o lote n˚84 (com visada para o Mercado São José) encobrindo assim a totalidade da empena cega da edificação n˚76;

 

2. A implantação da nova edificação deverá ser afastada da edificação histórica do lote n˚84 – conforme desenho anexo - de maneira a permitir a visualização e compreensão da volumetria histórica na sua totalidade (a partir da Rua das Laranjeiras) e novos percursos dentro do conjunto arquitetônico;

 

3. A nova edificação deverá ter duas alturas: no fundo do lote e alinhado à edificação proposta no lote n˚86, com o mesmo gabarito desta última. Do limite do alinhamento desta edificação até o limite do lote junto à Rua das Laranjeiras, ter o mesmo gabarito da edificação n˚76 na Rua das Laranjeiras, conforme desenhos.


 

Nossa proposta pretende não só reativar um importante equipamento da cidade e seu uso histórico como também resgatar a memória intrínseca dessa edificação, suas atividades e as relações sociais tão importantes para a contínua formação cultural e urbana da cidade do Rio de Janeiro. Desta forma, a proposta de inserção – respeitosa - de uma nova volumetria junto ao Mercado abre um importante debate urbano e patrimonial no trato das empenas cegas na cidade, superfícies essas que desqualificam nossos bairros e deveriam ser objeto de política urbana específica visando soluções que minimizem seu impacto negativo. Outras capitais pelo mundo, como Buenos Aires por exemplo, já possuem política urbana específica para o trato das empenas cegas e a flexibilização pontual do gabarito é a principal medida para o seu sucesso.

 

Vida longa ao Mercado São José!


[1] Ver: https://www.bairrodaslaranjeiras.com.br/principal/mercadinho.shtml



Iniciativa: AAA

Em aprovação no IRPH desde agosto 2022.

Local: Rua das Laranjeiras 90, 86 e 84, Laranjeiras, Rio de Janeiro

Data: julho 2022

Área total construída: 4.500m2

Equipe: Pedro Maia, Marina Agudo.




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